Autores | Marcelo Leonardo Cristiano e Helena Marques de Souza Fernandes, sócio e advogada associada do escritório Fraga, Bekierman & Cristiano Advogados |

 

Como um dos resultados do compromisso assumido pelo Brasil, na qualidade de signatário da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (Convenção da OCDE)[1], entrou em vigor, no dia 02 de fevereiro de 2014, a Lei 12.846, também conhecida como “Lei Anticorrupção”, que tem por objetivo estabelecer sanções de natureza civil e administrativa para os atos ilícitos praticados pelas pessoas jurídicas contra a administração pública, notadamente, atos de corrupção.

O ato normativo em questão foi editado em linha com o FCPA – norma anticorrupção americana criada na década 70, cuja aplicação atingiu o clímax a partir dos anos 2000 – e o Bribery Act inglês – norma mais recente e mais rigorosa, fruto em grande parte do novo cenário mundial pós-11 de setembro. A norma brasileira padece, todavia, de algumas das usuais mazelas encontradas na nossa produção legislativa e já foi alvo de críticas quanto à sua eficácia e sua constitucionalidade.

Embora o espírito da norma pareça apontar para uma direção legítima, os caminhos escolhidos merecem ser objeto de uma reflexão sobre as suas consequências. Entre os pontos sensíveis da Lei Anticorrupção estão: (i) a previsão de dissolução compulsória da pessoa jurídica, (ii) a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas por ilícitos (bastando que se constate a presença dos elementos “no interesse ou em benefício” da pessoa jurídica), e (iii) os limites do Acordo de Leniência a ser pactuado entre o órgão ou entidade pública e a pessoa jurídica infratora.

Tendo em vista a extensão do tema, a intenção aqui é apenas entender melhor a abrangência da nova norma, o seu contexto e o seu âmbito de aplicação. Os temas controversos merecem ser objeto de uma análise específica, a ser oportunamente apresentada.

1. Dos atos lesivos à administração pública nacional ou estrangeira

A Lei Anticorrupção, apesar desta alcunha, não se aplica apenas a atos de corrupção, mas também a outras condutas lesivas praticadas contra a administração pública, seja esta nacional ou estrangeira. De fato, constituem atos lesivos, na forma do art. 5º da Lei:

(i) prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada;

(ii) comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei;

(iii) comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados;

(iv) no tocante a licitações e contratos:

a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público;

b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público;

c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo;

d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente;

e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo;

f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou

g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública.

(v)   dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional.

2. Das sanções previstas na lei anticorrupção

2.1.  Da coexistência com outras normas assemelhadas e suas sanções

A Lei Anticorrupção e a aplicação das sanções nela previstas não afetam os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de violações à Lei de Improbidade Administrativa (8.429/92), à Lei de Licitações (8.666/93) ou ao Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC (12.642/2011). Isto implica na potencial coexistência de múltiplas sanções relacionadas ao mesmo fato, o que poderá gerar futuras controvérsias sobre a cumulação de sanções para o mesmo ato ilícito.

2.2.  Das sanções administrativas

Na forma da nova Lei, as seguintes sanções administrativas poderão ser aplicadas:

(i) pagamento de multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação;

(ii) publicação extraordinária da decisão condenatória e consequente inscrição no CNEP (Cadastro Nacional de Empresas Punidas).

Além disso, a Lei estabelece fatores que deverão ser levados em consideração para aplicação das sanções administrativas, conforme estabelecido no art. 7º, quais sejam: (i) a gravidade da infração, (ii) a vantagem auferida ou pretendida pelo infrator, (iii) a consumação ou não da infração, (iv) o grau de lesão ou perigo de lesão, (v) o efeito negativo produzido pela infração, (vi) a situação econômica do infrator, (vii) a cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações, (viii) a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica e (ix) o valor dos contratos mantidos pela pessoa jurídica com o órgão ou entidade pública lesados.

2.3.  Das sanções judiciais

Não obstante a responsabilização prevista na esfera administrativa, a Lei Anticorrupção prevê que o infrator poderá ser responsabilizado na esfera judicial, estando suscetível à aplicação das seguintes sanções:

(i) perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé;

(ii) suspensão ou interdição parcial de suas atividades;

(iii) dissolução compulsória da pessoa jurídica;

(iv) proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos.

3. Outros aspectos relevantes

3.1.  Responsabilidade objetiva

O art. 2º da Lei Anticorrupção estabelece que tanto na aplicação das sanções administrativas quanto da sanção judicial de perdimento de bens, direitos ou valores, a pessoa jurídica responderá objetivamente, ou seja, será responsabilizada mesmo que não tenha culpa, bastando restar comprovado que tal conduta foi praticada em seu benefício ou interesse.

Este é mais um ponto que tem suscitado críticas à nova Lei, já que tal como a dissolução compulsória da pessoa jurídica, algumas das sanções previstas na Lei Anticorrupção têm alto caráter punitivo e potencialmente letal à empresa, e imputar sanções dessa gravidade sem que esteja configurada culpabilidade do agente é desproporcional e parece fugir ao razoável. Da mesma forma, impor sanção a determinada pessoa que não tenha culpa fere  o princípio da personalidade, previsto no art. 5º, inc. XLV da Constituição Federal.

3.2.  Responsabilidade dos sucessores

A Lei Anticorrupção estabelece a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária. Entretanto, é válido ressaltar que, em casos de fusão e incorporação, a responsabilidade da sucessora estará limitada à obrigação de pagamento de multa e reparação do dano causado até o limite do patrimônio transferido.

3.3.  Desconsideração da personalidade jurídica

De acordo com a nova Lei “a personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial”. Nesta hipótese, serão estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.

3.4.  Acordo de leniência

O Acordo de Leniência é outro elemento relevante da Lei Anticorrupção e será considerado como um fator atenuante às sanções eventuais aplicadas, podendo reduzir o valor da multa em até 2/3 (dois terços), não desobrigando, porém, o infrator de reparar o dano integralmente. Vale lembrar ainda que apesar de o Acordo de Leniência ser um mecanismo efetivo sob o ponto de vista da investigação, não poderá resultar na deformação de outros institutos legais, ao exigir que o potencial infrator produza provas contra si mesmo, quando a lei assim não permite ou exige.

4. Como se ajustar à nova lei

As empresas que ainda não dispõem de programas de compliance deverão considerar a sua implementação, haja vista seu papel determinante na identificação de eventuais desconformidades e na prevenção de práticas vedadas pela Lei. É importante também ressaltar que a existência de um programa de compliance – desde que estruturado e efetivamente inserido na rotina da empresa – poderá funcionar como atenuante em casos de eventuais sanções.

Associada a isto, a implementação de treinamentos àqueles que se relacionam com a empresa (funcionários, empresas contratadas, etc.) torna-se medida necessária para que se garanta que o programa de compliance será efetivamente difundido na rotina da empresa e dos terceiros a ela ligados. É necessário assegurar que todos os envolvidos estejam aptos a identificar situações potencialmente lesivas e saibam como se comportar diante de tais circunstâncias, de modo a garantir a idoneidade das relações mantidas com terceiros e com o Poder Público.

As empresas devem se assegurar ainda que mantêm relações com parceiros idôneos, tendo em vista que as pessoas jurídicas poderão ser responsabilizadas pelos atos lesivos previstos na futura lei, praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não, ainda que cometido por quaisquer terceiros com os quais mantenha relação. Para tanto, faz-se necessário considerar a implementação de ferramentas que permitam uma prévia avaliação do contratado, de modo a certificar a sua idoneidade nas suas relações comerciais, notadamente àquelas que dizem respeito a contratações com o poder público.

Procedimentos internos de investigação também serão de grande valia para que as empresas estejam melhor posicionadas, permitindo que possam decidir sobre a conveniência de reportar voluntariamente às autoridades, através de cooperação voluntária ou a celebração de acordo de leniência.

Além disso, as empresas devem estar atentas às consequências da futura lei no em caso de operações societárias, já que as operações de fusões e aquisições não extinguem a responsabilidade pelos atos cometidos pela empresa sucedida ou adquirida. Assim, é recomendável que os processos de due diligence abarquem (além dos aspectos usualmente considerados, tais como trabalhistas e ambientais), mecanismos e elementos aptos a identificar a existência de eventuais atos lesivos previstos na Lei.

Por fim, a nova Lei Anticorrupção traz em seu conteúdo temas que certamente produzirão infindáveis discussões, sendo certo que a norma fria, como apresentada atualmente, prescinde da clareza necessária para assegurar a segurança jurídica dos envolvidos, sejam eles aplicadores da lei, sejam eles infratores. Há que se ter critérios claros para adoção da norma – que, se espera, virão com as regulamentações futuras -, afastando-se assim a sombra da incerteza, que tão mal serviu e serve ao nosso ordenamento jurídico.


[1] A Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (Convenção da OCDE) é um instrumento que define as obrigações dos governos, das empresas, dos contadores públicos, dos advogados e da sociedade civil das nações signatárias do Tratado. Maiores informações em http://www.cgu.gov.br/ocde/convencao/cronologia/index.asp