Autores | Roberto Bekierman e Guilherme Cinti Allevato, sócio e advogado associado do escritório Fraga, Bekierman & Cristiano Advogados |

 

A crise político-econômica e debates como a reforma da Previdência têm ofuscado assuntos de grande importância como as propostas legislativas sobre o conturbado tema das aquisições e arrendamentos de imóveis rurais por estrangeiros.

Hoje, a matéria é regida pela Lei 5.709/71 e, apesar do consenso quanto à recepção dessa lei pela Constituição Federal de 1988 (CF/88), ainda há dissenso sobre a constitucionalidade de alguns dos seus dispositivos. Exemplo maior é o art. 1°, § 1º, da Lei 5.709/71, que equipara a estrangeiras as pessoas jurídicas constituídas e com sede no Brasil, cujo capital, em sua maioria, pertença a estrangeiros. A doutrina dominante e a Advocacia Geral da União (AGU) adotavam o entendimento de que o dispositivo havia sido revogado tacitamente pelo art. 171, I, da CF/88, que considerava como brasileiras as empresas que aqui têm sede e direção. Nem mesmo a revogação do citado art. 171 pela Emenda Constitucional n° 6/95 alterou esse entendimento. Em 1993, o art. 23 da Lei 8.629/93 inovou ao estender aos casos de mero arrendamento as mesmas restrições à aquisição de terras por estrangeiros.

No entanto, o Parecer nº LA 01/2010 da AGU, aprovado pelo então Presidente da República, deu nova interpretação ao tema, entendendo que o § 1º do art. 1° da Lei de 1971 não teria sido revogado pela CF/88; portanto, ainda estaria em vigor a equiparação – e as limitações – para a aquisição e arrendamento de terras por empresas nacionais com capital majoritariamente estrangeiro. Em continuação, o INCRA editou a Instrução Normativa n° 76/2013 seguindo o novo entendimento da AGU e regulamentando os procedimentos de autorização para negócios imobiliários envolvendo estrangeiros e equiparados.

Mas, desde 2012, tramita, na Câmara dos Deputados, o PL 4059/2012, que revoga, na íntegra, a Lei 5.709/71 e determina que as restrições que estabelece “não se aplicam às pessoas jurídicas brasileiras, ainda que constituídas ou controladas direta ou indiretamente por pessoas privadas, físicas ou jurídicas, estrangeiras”; havendo, contudo, algumas exceções. O projeto veda a celebração de arrendamentos e subarrendamentos por prazo indeterminado e traz ainda duas inovações: liberação para que glebas de até 4 módulos fiscais possam ser adquiridas sem qualquer licença ou autorização, o mesmo valendo para se arrendar áreas de até 10 (dez) módulos fiscais; e possibilidade de aquisição de terras acima dos limites da lei, com autorização do Congresso Nacional e manifestação prévia do Poder Executivo Federal, quando negociados projetos prioritários aos planos de desenvolvimento do país.

O PL 4059/2012 aguarda votação na Câmara desde 16/09/2015 e essa morosidade levou o Governo a encomendar texto de Medida Provisória (MP) sobre o tema. O esboço tem o mérito de determinar a aplicação das restrições a outros direitos reais distintos da propriedade (como superfície, usufruto e servidão). Todavia, tanto o esboço de MP quanto o PL 4059/2012 silenciam sobre outras formas de transferência da posse diferentes do arrendamento e que não constituem direitos reais (e.g. contratos atípicos e comodatos). Mais grave, o esboço de MP peca ao conferir ao Presidente da República poderes para, mediante regulamentos, definir os limites de área para aquisição de direitos reais e arrendamento de terras por estrangeiros. Nesta senda, acertou o Congresso Nacional ao se insurgir contra a edição da MP, já que deixar essa definição à mercê da pauta do Governo criaria insegurança jurídica.

Agora, o Poder Executivo sinaliza que abdicará da edição da MP, para que o Congresso vote projeto substitutivo ao PL 4059/2012, adotando alguns dos elementos contidos no esboço divulgado.

Parece-nos que o erro mais grave das propostas é o foco exclusivo nos interesses do agronegócio e na defesa de fronteiras. Governo e Congresso desconsideraram que as áreas rurais também servem a outras atividades econômicas, dentre as quais a geração de energia elétrica por fontes alternativas sustentáveis, estratégica aos interesses do País.

Além da dispensa de autorizações ser insuficiente, visto que só alcança pequenas glebas, o projeto mantém obstáculos para empreendimentos de grande porte. Afinal, ultrapassados os baixos limites propostos, cada empreendimento deverá ser submetido a análise pelo Congresso e pelo Poder Executivo Federal (incluídas comissões e Ministérios). Trata-se de processo demorado, que onera, prejudica e afasta o investidor estrangeiro de projetos estratégicos de longa duração.

Infelizmente, os trabalhos legislativos em curso indicam a chegada de uma nova lei com antigos vícios. Revogar a Lei nº 5.709/71 é um passo importante, porém tímido, se o Brasil mantiver o mesmo olhar reducionista que restringe a zona rural ao binômio plantar e morar.