Autor | Marcelo Leonardo Cristiano, sócio do escritório Fraga, Bekierman Advogados |
Publicação | GAZETA MERCANTIL* |
Recentemente, foi publicada a Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003 (EC nº 42, denominada “Reforma Tributária”), que promoveu diversas alterações no texto da Constituição Federal, especialmente em matéria tributária e de finanças públicas. Entre as modificações introduzidas, uma tem especial relevância diante dos absurdos e graves efeitos que produzirá: trata-se do art. 4º da referida Emenda, com a seguinte redação “Os adicionais criados pelos Estados e pelo Distrito Federal até a data da promulgação desta Emenda, naquilo em que estiverem em desacordo com o previsto nesta Emenda, na Emenda Constitucional nº 31, de 14 de dezembro de 2000, ou na lei complementar de que trata o art. 155, § 2º, XII, da Constituição, terão vigência, no máximo, até o prazo previsto no art. 79 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”.
Em primeiro lugar, os “adicionais” a que se refere o art. 4º são aqueles criados pelos Estados e pelo Distrito Federal a partir da Emenda Constitucional nº 31, de 14.12.2000 (EC nº 31), que inseriu nos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) os arts. 79 a 83. O art. 82 determinava que os Estados e o Distrito Federal deveriam instituir “Fundos de Combate à Pobreza”, financiados a partir da criação de adicional de até dois pontos percentuais na alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, incidente sobre os produtos e serviços supérfluos (§ 1º, do art. 82, do ADCT, na redação anterior a EC nº 42).
A partir desta regra constitucional, os Estados e o Distrito Federal instituíram seus “Fundos” e criaram seus “adicionais”, muitos em flagrante desrespeito ao limite estabelecido (v.g. Estado do Rio de Janeiro que chegou a criar “adicionais” de cinco pontos percentuais).
Muitos contribuintes questionaram judicialmente tais adicionais sob os mais diversos fundamentos, como, por exemplo, a ausência de uma definição, em lei complementar, do que seriam “produtos e serviços supérfluos”, obstáculo intransponível para a criação e a exigência dos tais “adicionais”. Pode-se afirmar, sem exageros, que havia fortes indícios de inconstitucionalidade em relação a todos os adicionais criados a partir da EC nº 31. Tal assertiva é reforçada pelo fato de a nova redação do § 1º do art. 82, do ADCT, introduzida pela EC nº 42, expressamente prever que a exigência do adicional se dará nas “condições definidas na lei complementar”.
E qual foi a “solução” encontrada para este “problema”? O malfadado art. 4º da EC nº 42, que, em apenas 3 ou 4 linhas, assegurou que todos os adicionais criados pelos Estados e pelo Distrito Federal, mesmo que em desacordo (?!) com a própria EC 42, com a EC 31 e com as leis complementares editadas com base no art. 155, §2º, XII, da CF/88, valerão até 2010! Ou seja, a partir desta absurda regra, os “adicionais”, mesmo sendo inconstitucionais, terão vigência em nosso ordenamento jurídico por mais 7 sete anos!
Além de “constitucionalizar” para frente os adicionais criados em desacordo com a Constituição Federal, isto é, dotados de uma inconstitucionalidade nata, o art. 4º da Emenda atua retroativamente, atingindo os adicionais desde a sua criação e dotando-os de uma “constitucionalidade” originária.
Diante desse quadro, as perguntas que, em respeito ao Estado Democrático
de Direito, merecem resposta são: com a EC nº 42, que “resolve”, no futuro, inconstitucionalidades passadas, qual é o papel do Poder Judiciário no controle da constitucionalidade? De que valem os direitos e garantias assegurados no art. 5ª da CF/88, se, por força da EC nº 42, todas as discussões judiciais a respeito dos adicionais iniciadas pelos contribuintes perderão seus objetos? Qual é o significado e a relevância do princípio da irretroatividade, uma vez que o art. 4º atua no presente sobre fatos ocorridos no passado, transformado o errado no certo, o indevido no devido, em evidente prejuízo aos contribuintes do ICMS que foram onerados pelos “adicionais”?
A única resposta a estas indagações somente pode ser: o art. 4º da EC nº 42 é inconstitucional, seja porque viola o princípio da separação de poderes, de vez que cabe ao Judiciário, e não ao Legislativo, exercer o controle de constitucionalidade das leis estaduais que criaram os “adicionais”, declarando ou não a sua inconstitucionalidade, seja porque infringe (para não dizer coisa mais grave) boa parte dos direitos e garantias individuais assegurados a todos, inclusive aos contribuintes do ICMS. É este o comando inalterável do art. 60, § 4º, da Constituição Federal de 1988, e é ele que deve prevalecer.
Qualquer outra conclusão significará, sob qualquer ponto de vista, a instauração do “caos jurídico” em nossa sociedade.
(*) – artigo originalmente publicado no jornal “Gazeta Mercantil”, de 13.01.2004, sob o título “Breve análise do artigo 4º da Reforma Tributária”.